sexta-feira, 8 de julho de 2011

E DEUS DISSE: FAÇA-SE O FLA X FLU


O clássico das multidões hoje completa 99 anos. 7 de Julho de 1912, no Estádio das Laranjeiras, Flamengo e Fluminense se enfrentavam pela 1ª vez. O jogo já foi uma pequena amostra de como seria a história do confronto para sempre. Como domingo é dia do derby, falo um pouco do jogo que é considerado pela FIFA o 3° maior clássico, perdendo apenas para Boca Juniors x River Plate em 1° e Celtic x Rangers em 2°.

Fluminense 3 x 2 Flamengo
Time: Baena, Píndaro, Nery, Cintra, Gilberto, Galo, Baiano, Arnaldo, Borgeth, Gustavo e Amarante
Gols: Arnaldo e Píndaro

O Fla x Flu possui jogos inesquecíveis e é fonte de inspiração para poetas, cronistas e cantores. Possui o recorde mundial em partidas entre clubes: 194.603 pessoas, na final do Carioca de 63, vencido pelo Flamengo em empate sem gols.


O termo Fla x Flu surgiu em 25, quando a seleção carioca foi chamada às pressas para o Brasileiro de Seleções Estaduais. Dada a dificuldade de reunir todos os clubes, foram convocados só jogadores da dupla Fla e Flu. A atitude gerou repúdio e os amantes do futebol chamaram o time de combinado Fla-Flu. O time foi campeão, o que mudou o sentimento para com ele. Assim, Mário Filho, o jornalista que daria nome ao Maracanã, usou o nome em uma espécie de slogan quando tentou motivar o comparecimento das torcidas a jogos em 33.



Depois de umas curiosidade do jogo que me lembro do Zico falando uma vez no Esportevisão: "Você nunca pode entrar em um Fla x Flu achando que o outro é favorito." Transcrevo agora, vários textos de alguns que ousaram descrever em linhas o que é o Fla x Flu.



          “Mais do que os homens lutam no gramado, há o espetáculo dos que trepam nas arquibancadas, dos que se apinham nas gerais, dos que se acomodam nas cadeiras de pistas. Nunca vi tanta semelhança entre tanta gente. Todos os 70 mil espectadores que enchem um "Fla-Flu" se parecem, sofrem as mesmas reações, jogam os mesmos insultos, dão os mesmos gritos. Fico no meio de todos e os sinto como irmãos, nas vitórias e nas derrotas. As conversas que escuto, as brigas que assisto, os ditos, as graças, os doestos que largam são como se saíssem de homens e mulheres da mesma classe.”
-Armando Nogueira (Coluna de abril de 2003 no Jornal do Brasil)


Os 300 da Gávea

Nunca expulse dois flamenguistas num jogo só. É muito pior para o adversário. Aconteceu no Fla-Flu, e já tinha acontecido com o Corinthians. Quando os dois vermelhos foram erguidos, a torcida tricolor vibrou e comemorou. Ilusão. Era melhor ter jogado de igual para igual. Não só porque são raros os times brasileiros que aproveitam vantagem numérica, nem treinam isso em coletivos, mas principalmente por causa do Flamengo. A inferioridade em campo cavucou a própria história e mística do clube. Como se os jogadores falassem por dentro: “Agora é melhor! Agora vai ser com raça!”. Redatores dos jornais já preparavam as manchetes gastas: VITÓRIA COM A CARA DO FLAMENGO. No Maracanã, o resultado épico já se desenhava. O Fluminense em nenhum momento demonstrou inteligência para destroçar os 300 de Esparta. Atuou como se atua contra 11 jogadores. E talvez não tenha sido incompetência do time das Laranjeiras. E sim mérito dos tresloucados rubro-negros, que começaram a se jogar em cima da bola, nos adversários, para catimbar, para suar, para justificar o amor daquela torcida também delirante, que cantava sem parar incentivando seus queridos guerreiros. Renato Gaúcho devia ter mandado dois jogadores seus provocarem a própria expulsão. Contra o Flamengo, de igual para igual é sempre melhor. Para não despertar a fera. E a história do clube mais popular do país.
– Retirado da crônica do Sidney Garambone (Fla 1 x 0 Flu 1° turno do brasileirão 2007, gol do argentino Maxi)


"Enorme, esmagador, capaz de transformar em carnaval um espetáculo de futebol, o Maracanã já é uma lenda. A realidade contudo, é muito maior. A memória que em mim, ficará para sempre do Fla-Flu e, mais, do próprio futebol brasileiro, será desta enorme, pungente, feliz experiência humana".
– Retirado do Jornal do Brasil após a decisão do carioca de 69, as palavras são do escocês Hugh McIlvanney, correspondente do The Observer


“No dia da inauguração do paraíso, houve um Fla x flu de portões abertos, e escorria gente pelas paredes” – Nelson Rodrigues


“Reacionário, no meu caso, é a reação contra tudo o que não presta. Se o homem não fosse eterno, ou não tivesse uma alma eterna, não tivesse garantido a sua eternidade, esse homem andaria de quatro. Toda manhã sairia de quatro, ferrado, aí pelas ruas e montado num Dragão de Pedro Américo. Eu diria, quando me perguntam, como você agora: mas quando, quando começou o Fla-Flu? Eu diria: – O Fla-Flu não tem começo. O Fla-Flu não tem fim. O Fla-Flu começou quarenta minutos antes do nada. E aí então as multidões despertaram. E Mário Filho, já então, antes do Paraíso, escrevia sobre o Fla-Flu e dizia que o Fla-Flu ia ser o assombro do futebol, o milagre do futebol.” – Nelson Rodrigues


"Meu personagem da semana não é um jogador: meu personagem é um jogo. Mais que um jogo, é uma entidade do futebol. Uma entidade chamada Fla-Flu, essa bela sigla com timbre de verso que os tempos já converteram em lenda. Domingo, foi tarde de Fla-Flu, no Maracanã. E, pra que se cumpra, mais uma vez, a tradição da alternância no altar do triunfo, agora, foi a vez do Flamengo. Vi a partida e posso dizer a quem não viu que a vitória do Flamengo foi realmente arrasadora. Tão arrasadora quanto a do Fluminense, em jogo recente. Sempre foi assim e sempre assim será. Uma lá, outra cá. Porque o Fla-Flu não é uma simples partida entre duas equipes, entre dois clubes, entre duas torcidas. O Fla-Flu tem camisa própria. Tem desígnios que são só seus. O Fla-Flu tem torcida própria. Tanto é verdade que, outro dia, conheci uma moça, numa roda em que se falava de futebol. Perguntei-lhe, amavelmente: por qual você torce? E a moça me respondeu, candidamente: Eu torço pelo Fla-Flu. Só uma coisa explica esta moça: é a encantadora química do Fla-Flu". – Nelson Rodrigues


O Fla-Flu, já me dizia o meu irmão Mário Filho, o Fla-Flu é um jogo para sempre, não é um jogo para um século, um século é muito pouco para a sede e a fome do Fla-Flu… Começado o Fla-Flu, ele percorreria o tempo dos tempos. Foi uma criação do meu irmão Mário Filho, ele que era o gênio da crônica esportiva, ele era o autor de piadas fantásticas. Ele se lembrou de fazer Fla-Flu, tinha notado que Fla-Flu possuía uma flama, uma trepidação que nenhum outro jogo possuía. Até hoje em todo o mundo não há um jogo que chegue aos pés do Fla-Flu. Que é cada vez mais empolgante. E cada jogo entre o Fluminense e o Flamengo parece ser o maior do século e será assim eternamente.” – Nelson Rodrigues


Uma goleada no FLA x FLU 1945

O juiz Fioravante D'Angelo entre os capitães Jaime e Pedro Amorim.
Foi mais um Flamengo e Fluminense na história do tradicional clássico carioca. Pelo Torneio Municipal carioca de 1945, em São Januário, o Flamengo aplicou uma tremenda goleada no Fluminense: 7x0. No primeiro tempo, os rubros negros já venciam por 1x0, gol de Pirilo. No segundo tempo o clube da Gávea veio arrasador – Pirilo. Adilson. Tião. Tião. Pirilo e Pirilo foram os artilheiros.
Foi um clássico tecnicamente fraco. Não foi compensado pelo entusiasmo dos contendores, da submissão dos tricolores e com a frieza que os rubros negros agiram diante da sua superioridade. E como o Flamengo agiu menos mal, alcançou uma vitória merecida por uma contagem inédita na história do Fla-Flu.
O juiz foi Fioravante D’Angelo.
O Flamengo goleou com Luis Borracha. Newton e Quirino. Biguá. Bria e Jaime. Adilson. Zizinho. Pirilo. Tião e Jarbas.
O Fluminense perdeu com Batataes. Hélvio e Haroldo. Afonsinho. Pascoal e Bigode. Pedro Amorim. Simões. Geraldindo. Nadinho e Murilinho
Esporte Ilustrado de 1945 (notícia da nossa maior goleada em cima do Fluminense)


Dois flamenguistas extremamente conhecidos da torcida eram tricolores. Ary Barroso e Jayme de Carvalho:
“Como adorava esportes, não perdia um jogo de futebol. Apesar de praticar remo.
Era Fluminense.
Certo dia foi ao estádio das Laranjeiras, na esperança de assistir ao treino. Foi barrado. Ele era mulato e era pobre. Não podia entrar no Fluminense. Naquela época, no Fuminense, quem morasse em Vila e fosse escuro, não entrava. Nem jogador! O Fluminense era o clube da elite. Da alta sociedade.
Jayme sentiu-se humilhado. Era orgulhoso.
O Flamengo treinava ali pertinho, no Campo do Paissandu, à vista do povo.
Jayme foi pra lá e apaixonou-se. Virou Mengão.
Foi assim também com outro lendário flamenguista, o compositor, radialista e locutor esportivo Ary Barroso. Ary era tricolor. Uma vez o Fluminense perdeu e ele chorou de tristeza.
Quando passou na porta do clube, havia uma grande festa. Festa de gala, com música, vestido longo e tudo mais. Ary não se conformou. Enquanto ele, torcedor apaixonado, chorava a derrota do time, o clbe festejava não sei o quê.
Mudou de time. Virou Flamengo.”
Trecho do livro “Acima de Tudo Rubro-Negro”, de Cláudio Cruz e Wilson Aquino

E pensar que um desses tricolores foi fundador da primeira torcida organizada do Flamengo em 1942. O outro rendeu uma história e tanto:
"Nenhum convite de Hollywood, portanto, impediria Ary Barroso de acompanhar a campanha do Flamengo em 1944 (...) Os brasileiros que o acompanhavam nos EUA ficaram impressionados com a sua reação a um convite formulado PESSOALMENTE por Walt Disney para que assumisse a direção musical da Disney Produtions (...) Ary pediu 24h para dar a resposta - um incisivo não. "Why?", perguntou espantado Disney. E Ary respondeu naquele seu inglês incorreto: "BECAUSE "DON´T HAVE" FLAMENGO HERE."
Trecho do livro "No tempo de Ary Barroso", de Sérgio Cabral


Texto de torcedor sobre o Fla 4 x 3 Flu pelo carioca de 2004

Foi dose. Nós fomos até lá. Estávamos lá dentro, naquele calor infernal. Ontem o meu filho Daniel começou a descobrir que existem duas coisas nesse mundo. Uma, é o futebol. A outra, é o Fla-Flu. Descobriu que esse adversário odiado é mais do que um simples time de futebol. É um time de futebol seguido por uma horda de loucos fanáticos, que se agrupam e fazem gol. Entram em campo e fazem gol. Fazem o segundo, o do empate e o da virada.
Numa única tacada ele descobriu o medo e o respeito que se deve ter dessa instituição e desse jogo, clássico de apelido garboso, colorido interminável e lotado de almas fanáticas. É coisa para gente grande. É jogo para quem tem o coração tingido dessas cores. De grená, verde, preto, vermelho e do branco que acompanha esse arco-íris. O ar que se respira no estádio é diferente, a atmosfera é diferente. Tudo muda quando você chega na Praça da Bandeira ou cruza a Zona da Leopoldina em direção àquela maçaroca de concreto. Um aglomerado velho e obsoleto, sem conforto ou segurança. Mas que vicia. Nos deixa dependentes dele e de seus mistérios e dogmas. É. O Maracanã tem dogmas. E não são poucos. São sérios o suficiente para fazerem de seus jogos eternos eventos com ares de seita. Com rituais próprios, cânticos específicos, liturgia. E consagração. Lá a gente aprende desde cedo que o jogo só termina quando acaba (it is not over until it is over, dizia o astro do baseball, Yogi Berra). E eu andava meio esquecido disso. Logo na chegada, quando descíamos o Oduvaldo Cozzi a pé, com o calor escorchante se despregando do asfalto, eu senti a atmosfera oblíqua.
Olhei pelo viaduto abaixo, me desviando de cambistas e flanelas, e enxerguei o capitão Belini erguendo a taça. Sempre cercado pelo burburinho da esperança. A meia hora do pontapé inicial, cada um nós se aproxima do portão com esperança saltando pelos poros. O menino de sete anos beijava o seu cordão sagrado, com a camisinha tricolor dependurada num barbante preto sebento. Olhávamos um tumulto nas bilheterias e a Raça Rubro Negra chegando pelo lado da Radial Oeste. Gente por todos cantos. O gesto dos punhos cerrados e cruzados ao alto e o prenúncio de arrastão. Esse é o grande contraste dessa minha vida de pequeno burguês. Pequeno burguês até na escolha do time de coração. Time que provoca engarrafamento no Rebouças, quando enche o Mario Filho, e fila nos restaurantes da Zona Sul depois dos seus jogos.
É só nesse dia de Fla-Flu que eu enxergo o contraste que existe entre as patricinhas sem sutiã da torcida tricolor e a tropa de marginais guerreiros da Raça Rubro Negra e da Torcida Jovem. Um abismo social. Do ambiente de clubinho direto para a vida-como-ela-é. Um pânico de mais de trinta anos. A língua incha dentro da boca e o medo me surrupia a nesga de esperança. A baixa-estima da elite quando se perde em meio ao nada. Ir a esse clássico é estar perdido no meio do nada. Subir a rampa nos Fla-Flus é sempre um constrangimento. Um exercício de mau gosto. Mudar de lado por ser menos numeroso. Por ter sido invadido em priscas eras, quando tomaram nosso lugar à força e nos mandaram para o lado direito das cabines de rádio. Explicar para um menino o porquê de naquele dia - só naquele dia, em mais nenhum outro - ter que virar para a esquerda, no sentido horário, é sempre uma pequena revolta. Ter que ver o jogo sentando naquelas faixas de concreto que abrigam bundas vascaínas é falta de higiene. Um desgosto que me acompanha desde criança, quando fui rampa acima ver o meu primeiro Fla-Flu, em 1977 (1x1).
Ontem, os deuses desse jogo se alojaram naquelas arquibancadas desde cedo. Pintaram e bordaram com as duas nações. Com 19 minutos do segundo tempo eu estava trepado na divisória entre as cadeiras amarelas e as brancas (o módulo central, que mistura as duas torcidas), fazendo o sinal de acabou com os braços, chamando um cara do outro lado de corno e entoando o famoso "ela, ela, ela, silêncio na favela". Era o terceiro gol do gigante Rodolfo. Doze minutos depois, a favela vinha abaixo com seus gritos de guerra. E eu descia a rampa em ritmo acelerado, com um nó na garganta, cumprimentava o grande Belini e entrava no primeiro táxi que vi pela frente. O menino pedia para ficar. Se lembrava de um jogo com o Santos em que saímos 1 minuto antes e o time cavou um empate fantasma aos 48 do segundo tempo. Eu olhava fixo para a Avenida Maracanã de dentro daquele Santana velho. O taxista insistia em dizer que achava o estádio muito perigoso e que não gostava de futebol. Mas pedia detalhes do jogo e mantinha diálogo com a frustração escancarada do meu pequeno Daniel. Eu nunca tive medo dessa trupe. Nunca mesmo. Mas que é diferente, é. Os outros sempre foram fregueses. Sempre foram engolidos. Mas esses não. Peguei os piores momentos da história desse jogo, quando tínhamos que ir a campo ver Artur Antunes, Leovegildo, Leandro, Tita & Cia. Chegamos a enfrentar isso aí com times absolutamente medíocres, de zezés, galaxes e robertinhos. E eu nunca tive medo.
Mas sempre existiu uma coisa que me deixa perambulando entre o mistério e o pânico. Aliás, não é "coisa" coisa nenhuma. É metafísica. É o Sobrenatural de que tratava Nélson. É perturbante. É aquela massa uniforme pulando do outro lado. 23 minutos, 1x3, e eles não paravam de pular; ninguém saía do seu aperto; ninguém ia embora. Eles nunca vão embora. Eles nunca arredam o pé. Eles não se sentam, não param de gritar. Eles não sossegam. Me perseguem, me sufocam, me habitam os pesadelos e me causam pânico. Quando eu olho para o outro lado é isso que eu sinto. Eles acreditam mais do que os outros. Mais do que eu e todos os outros juntos. E disso, meus caros, eu me borro de medo. Eles jogam com 12. E jogar com 12 deveria ser proibido. Deixar Felipe andando de um lado para o outro, desfilando o seu repertório de categoria e classe, foi uma imprudência. E o jogo foi um jogo para a história. Dentro do táxi, uma frase de uma criança de sete anos ficou estalada no meu tímpano: "papai, eu tenho nojo deles". Eu também tenho. É só o que posso dizer hoje. Mas se não fossem eles essa mágica não existiria.
Cláudio Lambert (Tricolor)


Os Irmãos Karamazov

Começo aqui a minha grave função homérica. Minha memória é um chão todo juncado de clássicos e peladas fenecidos. Antes, porém, de exumar os velhos jogos, preciso explicar toda a minha dramática relação com o Fluminense. Sou Tricolor, sempre fui Tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, antes, muito antes da presente encarnação. Vejo-me em Aldeia Campista, garoto de pé no chão e calça furada. Teria quatro anos, se tanto. 1916. A Primeira Grande Guerra ainda matava milhares, ainda matava milhões. E como então se promovia mundialmente o bigode do Kaiser! Esse bigode era o grande assunto da caricatura, em todos os idiomas.
Para mim, moleque da rua Alegre havia uma relação nítida e taxativa entre a guerra e o Fluminense. Seriamos campeões em 17, 18 e 19. Ainda hoje, meio século depois, tenho a sensação de que a Grande Guerra trazia no ventre o tricampeonato Tricolor. Vejamos o absurdo: a Grande Guerra seria apenas a paisagem, apenas o fundo das nossas botinadas. Enquanto morria um mundo e começava outro, eu só via o Fluminense.
Quem ia ao futebol era Milton, o meu irmão mais velho. Acompanhava o Tricolor, com uma obstinação de fanático. Quando ele cheguava, de noite, eu vinha correndo perguntar:- "Quem ganhou". E ele, tostado pelo sol dos clássicos e das peladas:- "O Fluminense!" Era o Fluminese, sempre Fluminense. Até que, um dia, não foi o Fluminense.
Imagino que o leitor esteja fazendo a impaciente pergunta:- "E o Flamengo?" Hoje, o Rubro-Negro, por onde vai, arrasta multidões fanatizadas. Há quem morra com o seu nome gravado no coração à ponta de canivete. Mas eu não falei no Flamengo e explico:- O Flamengo nem sempre foi Flamengo.
Cada brasileiro, vivo ou morto já foi Flamengo por um instante, por um dia. Vale a pena voltar a 1911, ou 12, não sei. Como eu dizia, o Flamengo era ainda Fluminense.
Eu disse que o Flamengo era ainda Fluminense e já retifico Antes do futebol, o Rubro-Negro foi remo ou, melhor dizendo, foi "domingo de regatas".
Até que, um dia, houve uma dissidência no Fluminense. Eu gostaria de saber que gesto, ou palavra, ou ódio deflagrou a crise. Imagino bate-bocas homicidas. E não sei quantos Tricolores saíram para fundar o Flamengo. Hoje, nos grandes jogos, o Estádio Mário Filho é inundado pela multidão rubro negra. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, troveja, relampeja. Eis o que eu pergunto: - Os gatos pingados que se reuniram, numa salinha imaginavam as potencialidades que estavam liberando? Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro.
Nelson Rodrigues





Ah, O Primeiro Clássico

Eu estou imaginando o campo, as duas torcidas e os times. Mas para visualizar a partida temos de inseri-la no velho Rio, o Rio machadiano, o Rio que era uma abundante paisagem de gordas.

Na "belle époque", as mulheres iam para o futebol como se fossem para uma recepção no Itamarati. E elas demaiavam, vejam vocês, ainda tinham ataques. De vez em quando, faço a mim mesmo esta pergunta: - "Há quanto tempo não vejo uma mulher com ataque?" Elas matam e se matam, elas se atiram do sétimo andar, elas devoram um tubo de comprimidos. Mas não têm ataques, nem desmaiam. Ah, naquele tempo era lindo "ser histérica". E no futebol, quando entrava um gol, as mulheres desfaleciam, pareciam morrer em estertores. Os homens achavam sublime.

O primeiro Fla-Flu não era Fla-Flu. Só muito mais tarde é que Mário Filho inventou e promoveu a abreviação. O Flamengo fez tudo, tudo para ganhar este primeiro jogo. Outro dia, conversei com um velho torcedor, mais velho que o século. E ele, falando fino e baixinho (como uma criança que baixa num tenda espírita), contou o que foi o nascimento do maior clássico do futebol brasileiro. O Flamengo era o time campeão do Fluminense, sem Oswaldo Gomes.

Parece que na partida o futebol era um detalhe irrelevante ou mesmo nulo. Os dois times davam a sensação de que jogavam de navalha na liga. E, no entanto, houve um cínico e deslavado milagre: - ninguém saiu de maca, ninguém saiu de rabecão. Mas nunca se vira, em campo de futebol, ferocidade tamanha. E o Fluminense venceu.

Vejam como, histórica e psicologicamente, esse primeiro resultado seria decisivo. Se o FIamengo tivesse ganho, a rivalidade morreria, ali, de estalo. Mas a vitória tricolor gravou-se na carne e na alma flamengas.

E sempre que os dois se encontram, é como se o fizessem pela primeira vez.
Nelson Rodrigues

Foto que dizem ser do primeiro Fla x Flu da história. Não ouso afirmar que é

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